terça-feira, 24 de dezembro de 2013

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Pechão na Fonte - Santa


Vem isto a propósito de hoje de manhã, encontrar restos de comida a sair de um saco de plástico dentro do contentor do lixo que dava para alimentar duas pessoas, talvez três se estiverem em dieta.

No tempo da ditadura, a fome era assumida e a pobreza estava em maioria. Os que tinham escassos recursos e viviam com dificuldades, dividiam a comida irmãmente e rapavam o prato até deixá-lo pré - lavado, e os que não tinham nada, andavam de porta em porta a esmolar. Mas sempre que batiam a uma porta, ela abria-se, e recebiam um naco de pão com toucinho, ou um punhado de figos torrados, acompanhado de uma palavra amiga, e temperado com um sorriso complacente, tudo servia para acalmar o estômago assanhado e o espírito embargado. O sofrimento e as dificuldades generalizadas entrelaçaram as pessoas e geraram um enorme sentimento de partilha. (Sim. É o que estão a pensar! Dar sem esperar nada em troca.)  
As pessoas mudaram e os conceitos também. Agora, para gáudio dos Troikanos e angústia da plebe, os pobres silenciam a fome e os esfomeados procuram alimento no lixo, ou seja, ganhou-se vergonha de ser pobre e perdeu-se o sentimento de partilha. Apesar disso e também por isso, um Bom Natal para todos.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Felizmente …



Terreiro do Paço - 1974

...ainda existem os amigos. Não os da onça, que nos dão palmadinhas nas costas e ao virar da esquina tem o desplante de nos sacanear. Existem inúmeras normas para manter uma amizade saudável e duradoura, mas basta uma regra ser cumprida na íntegra para todas as outras se diluírem: A lealdade. E essa, encontra-se na sua maioria nos amigos da adolescência, que depois de tantos anos de cumplicidade criam uma intimidade que o tempo se encarrega de manter. Sempre prontos para o que for preciso, principalmente chamarem-nos à razão quando não a temos. E esses entram sem bater à porta.Confundem-se, e muitas vezes substituem a propria familia, provando que a espécie humana talvez não esteja condenada. Ainda.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O jantar de despedida do Zeca




Lembro-me quando chegou a Pechão. Pequeno, com cinco ou seis anos, irrequieto, na mercearia da mãe a contornar os sacos de feijão, a saltar as caixas de sabão e a esconder-se na cabine do telefone. No sábado, os seus amigos e apoiantes reuniram-se numa despedida, justa e sentida. Não fui convidada, mas se não estivesse a chocar uma gripe que me atirou para junto do borralho, tinha falado com as meninas da Junta e inscrevia-me. Afinal, passados tantos anos continua irrequieto e a contornar obstáculos, é que quatro mandatos sempre com maioria absoluta não é para todos.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

… e agora?



...quem trata da horta, do olival, das alfarrobeiras e das amendoeiras? Uma geração de agricultores que se esfarrapou de sol a sol para deixar um legado, ficou sem forças para erguer a enxada. Vivem num paradoxo; em novos, pujantes, esfarraparam-se para dar aos filhos aquilo que eles nunca tiveram: instrução e carreira. Em velhos, debilitados e vencidos pela idade, clamam por um sucessor. Os herdeiros procuraram outra forma de vida, longe do desconforto do campo e perto da comodidade de um emprego. Ficam com a herança mas não sabem o que fazer com ela. Os progenitores, resignados ao relógio da vida, mortificam-se ao ver as árvores de fruto ressequidas e as batatas greladas por semear, e, num último sinal de esperança, desfazem-se dos bens e do rendimento de uma vida. Ficam apenas com os olhos… para chorar.

domingo, 3 de novembro de 2013

A minha vizinha (4)



Quando a pontualidade é uma realidade, dez minutos são uma saudade e meia hora uma eternidade. Exasperada, cabisbaixa, como a pernada da oliveira debruçada sobre a casota do rafeiro alentejano. O tempo passa e ela passa-se. Enquanto as pernas tremilicam e o coração desata aos coices, mergulha a cabeça nas mãos, apavorada, como se naufraga-se numa ilha deserta rodeada de cartazes gigantes com a fotografia da antiga namorada dele.Nem pista nem sinal, apenas o maldito silêncio que lhe queima as entranhas e a leva à loucura e, até um melro estacionado numa laranjeira enfezada parece agourar. Não necessita de explicações nem de desculpas, precisa dele, como de um antídoto para a mordedura de uma cobra venenosa, porque ele é bússola que a atrai e a faz perder o norte.

Ei-lo que surge, e antes de esboçar qualquer palavra, já ela tinha voado para os seus braços.Resgatada do vazio e do medo, apertou-lhe o esterno e aninhou-se no peito. E ali ficou, olhos fechados, saboreando as lágrimas, o momento perfeito, a vontade de algemar–se cintura com cintura, e oferecer a chave ao melro que acabava de bater as asas e desaparecer. É o degelo. Tacteia-lhe as curvas do rosto, desliza pela recta do pescoço e beija-a com o menu completo, dá-lhe outro de sobremesa e leva-a às cavalitas para não perderem o apetite. Não me avistaram mas sabem da minha presença. Aferrolham a porta, fecham a janela e correm as cortinas.