Dizem que o tempo apaga tudo mas não é verdade: apenas apaga se nós deixarmos. Mesmo perante o silêncio que nos consome as entranhas e as palavras que o trazem a nós, nada melhor que deixar a sua memória fluir, naquilo onde ele era o melhor.
Faz no próximo dia 21 de Setembro, trinta e sete anos que nos deixou. Prevendo o que iria acontecer, escreveu este comovente artigo três meses antes do seu falecimento no jornal “Claridade”, órgão cultural e informativo do C.O. Pechão.
O enterro do pião
“A tarde estava fria. Fustigadas pelo vento invernoso de um Janeiro frio, e triste, as embarcações atracavam à velha doca dançavam ao sabor das ondas. As nuvens cinzentas, sopradas pelo vento, seguiam em loucas correrias procurando chegar o mais depressa possível ao seu destino imaginário.
Um pequeno muro, branco de neve, protegia o hortejo do “Ti Joaquim”, velho dos seus setenta anos, cuja bondade o seu rosto transparecia. Às vezes o rapazio para o fazer zangar chamava-lhe “mirra” e ele todo arfava, barafustava e até às vezes corria atrás dos rapazes. Mas era só nesse momento; depois voltava para casa rindo e dizendo baixinho…”mirra”…”mirra”.
Era ali junto à sua horta, que a malta se juntava.
Hoje somente ali se encontravam cinco. Aos mais dias eram seis. Faltava o Talica, e de futuro faltaria sempre. Fora a enterrar havia poucas horas. O médico dissera que ele havia morrido com uma doença incurável. Todos os cinco trocaram olhares, sem se atreveram a falar. O vento parecia esbofeteá-los.Que faziam ali? Esperavam o Talica? Ele não viria mais. De repente o Jorge, o “cabeça de seta” ajoelhou-se. Na sua mão um pião luzia. Era o pião do Talica.Depois de ter aberto uma pequena cova enterrou-o. Afastou-se e nova cova abriu metendo nela o seu pião.
Movidos como autómatos, os restantes quatro haviam feito o mesmo, e num círculo cujo centro era o pião do Talica haviam enterrado também os deles.
Depois ergueram-se lentamente, olharam-se e começaram a soluçar. Do céu um raio de sol brilhou na tarde cinzenta.
Era o Talica que lhes agradecia.
“Neto (“Claridade” Maio de 1973”)